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Investigação da Relação Transferencial e Contra Transferencial no Processo Terapêutico: um Estudo de Caso na Abordagem Junguiana.

Resumo: O presente artigo é um estudo de caso de uma paciente de quarenta e quatro anos e teve como objetivo, investigar a relação transferencial e contratransferencial, bem como a formação de vínculo no processo terapêutico, além de relatar os aspectos emocionais, as situações vivenciadas na prática, e a importância do estágio supervisionado para uma aluna do curso de psicologia. Para embasar teoricamente o conceito de transferência e contratransferência, foram utilizados textos de Mario Jacoby e Carl Gustav Jung, além de artigos pesquisados em bancos de dados e em sites na internet.

 

Palavras-chave: Transferência, Contratransferência, Relação Paciente-Terapeuta, Processo terapêutico, Estudo de Caso.

 

1. Considerações Iniciais

O Estágio supervisionado se faz importante no sentido que oportuniza possibilidade de vivenciar na prática as ações transformadoras de um contato profundo, humano e genuíno voltados para o cuidar do outro, manejo que demanda flexibilidade no lidar ambivalente, dialético, em encontros que promovem transformações, onde as subjetividades individuais entram em colóquio, o que resvala em novos sentidos e significados existenciais para os envolvidos.

A tarefa não é simples para o aluno que se depara com uma nova “persona”, o papel de psicólogo, no qual é responsável pelo cliente, diante dos colegas, do supervisor e também da instituição (no caso o Serviço de Psicologia da Faculdade da Cidade do Salvador).

Desenvolver uma atitude clínica frente a todos os envolvidos fundamenta-se na concepção que esse aluno tem dos diversos papéis que representa: amigo, colega, aluno etc., e da compreensão e apropriação do papel de psicólogo que precisa incorporar e se apropriar nas situações apresentadas. Nesse momento, expectativas, fantasias ocultas ou dissimuladas quanto aos respectivos papéis dos envolvidos no processo, se efetivam de forma contundente, fato que a prática clínica supervisionada, ajuda a desmistificar e a interiorizar: o papel de psicólogo.

É de fundamental importância manter uma atitude ativa nesse processo, não uma absorção passiva dos procedimentos que estão sendo aprendidos: é necessário sentir cada momento, pois segundo Danilo Cruz, meu supervisor, “só faz sentido se for sentido”.

Nessa fase da vida profissional, o medo que os pacientes abandonem o tratamento, o não dar conta de criar um vínculo faz-se presentes inicialmente, o que momentaneamente traz insegurança e coloca em xeque a competência de não estar desempenhando de forma eficiente a tarefa profissional. Dá medo de "fazer feio" diante dos colegas, do supervisor, de si mesmo e temem-se críticas destes, ao se expor. Entretanto, essas manifestações vão se dissipando na medida em que se sente o ambiente da supervisão acolhedor, sigiloso e confiante, o que oportuniza o crescimento individual e do grupo.

Neste momento do curso ao deparar-se com a prática, só o conhecimento teórico não é suficiente, a confrontação com conteúdos emocionais, o lidar de forma habilidosa com estes, exige um esforço pessoal enorme no sentido de convertê-los em instrumentos de trabalho.

Dessa forma, resolvi investigar de forma prática através de um estudo de caso, algo que envolve as relações no processo terapêutico e que para mim se constitui num momento crucial onde tudo começa a acontecer, a transferência/ contratransferência e a formação do vínculo.

 

2. Fundamentação Teórica

A situação de dependência e autonomia do paciente para com o terapeuta diz respeito à relação de transferência e contratransferência que se estabelece entre eles – para Jung (1985), esses dois fenômenos acontecem ao mesmo tempo e significam a mesma coisa.

A empatia, atitude que o terapeuta experimenta a partir do momento que se coloca no lugar do paciente e o acolhe deixando-o a vontade, oportuniza o surgimento dos processos transferenciais e contratransferenciais, o que favorece a psicoterapia, pois promove a adaptação do paciente ao processo, ajudando-o na resolução dos seus conflitos Então é de suma importância que este profissional preste bastante atenção aos seus sentimentos, pois o efeito da terapia está relacionado, dentre outras coisas, com o grau de doação do terapeuta.

Segundo Scarpato (2011), quando o terapeuta consegue estabelecer um vínculo positivo, empático e confiante com seu paciente, aí surgem o fator realmente mais importante de todos para o sucesso de uma terapia. Este fator é o paciente. A importância da contribuição do cliente é extraordinária, quando comparada com outros fatores. Sem essa contribuição nenhuma mudança se faz em nenhuma psicoterapia, seja ela de que abordagem for.

É imprescindível para a compreensão desse estudo a apresentação do caso que irei abordar. Trata-se da paciente que denominei de Rosa, primeiro nome que veio a mente a fim de preservar sua identidade, sexo feminino, quarenta e seis anos, solteira, a caçula de três irmãs que veio para a terapia por vontade própria e em busca de alívio para a dor pela perda do genitor. Sempre morou com os pais e atualmente, após a morte do pai, reside com a mãe e uma das irmãs. Inicialmente relatou não ter problemas no convívio familiar, entretanto no decorrer da terapia as queixas quanto a esse aspecto foram contundentes. Gosta de usar roupas relativamente curtas, enfeitar-se. Sempre foi sustentada financeiramente pela família. É professora primária, apesar de ter dificuldade em interpretação de texto, cálculos matemáticos, redação e não conseguir ser admitida nas empresas onde se candidatou a uma vaga de emprego, pois não consegue passar nas seleções a quais se habilita, “perde” nos testes.

Solteira, teve a primeira relação sexual aos vinte e um anos, nunca teve um relacionamento sério e está sem namorar há algum tempo. Possui um comportamento dionisíaco, oscilação de humor, ansiedade, tremores nas mãos quando nervosa e uma intrincada relação de dependência das pessoas. Padrão de relacionamento instável e intenso variando rapidamente entre ter um grande apreço por certa pessoa para logo depois desprezá-la. Comportamento impulsivo principalmente quanto a gastos financeiros, padrão recorrente de emoções sucessivas e de busca por atenção, tendência a dramatizar, comportamento sedutor, carente afetiva, exibicionista, exigente e lábil (muda facilmente de atitudes e de emoções). Transita do amor ao ódio com muita facilidade a depender do grau de satisfação em que se encontra. Esteve em atendimento por um ano com uma colega que concluiu o curso e por mim desde o início do oitavo semestre, há quatorze sessões.

Percebo na sua forma de se comportar, algumas características que me levam a supor hipoteticamente e que provavelmente serão corroborados ou contraditos posteriormente, tratar-se de alguns traços dos transtornos de personalidade Boderline e Histriônico.

Sabe-se que os transtornos de personalidade são maneiras de “ser” assim e não de “estar” assim. São estados e tipo de comportamentos característicos que expressam maneiras da pessoa viver e de estabelecer relações consigo mesma e com os outros. Fazem sofrer tanto a pessoa quanto quem as rodeia.

Quero evidenciar, que a questão aqui levantada não é critério preponderante para que o processo terapêutico se efetive, mesmo porque não é meu objetivo fazer diagnóstico através dos sintomas e sim entender toda a subjetividade que permeia e alicerça essa alma que fala através de características peculiares. Pretendo ter uma atitude diferencial, propor situações que digam respeito a minha paciente em sua totalidade e não apenas limitá-la a sua sintomatologia.

 Percebi em mim, nos atendimentos iniciais, certa animosidade e distanciamento, em relação à paciente. Seu discurso continuava o mesmo, apenas o estado de humor se alternava, mudando de um atendimento a outro consideravelmente. Entretanto, a partir do quarto atendimento, quando ao emitir um relato ela se mobilizou, chorando muito e externando sentimentos através de um processo catártico, a minha alma foi tocada e por um momento a “senti”, num processo de contratransferência, colocando-me no seu lugar. A partir desse momento, passei a ter um sentimento empático a seu respeito, comecei a adentrar no seu mundo e a efetuar as primeiras trocas de um “método” contínuo e inter-relacional.

A seguir acredito ser pertinente trazer a fala da paciente que ratifica o que me proponho a investigar. Tentando identificar a respeito da transferência perguntei o que era pra ela uma pessoa dedicada. Respondeu que era uma pessoa que tem “respeito, responsabilidade e gosta do que faz” (sic). Ao relacionar a uma pessoa que conhecia disse ser R, seu amigo. Pude constatar então, que ao me considerar uma pessoa dedicada na sessão anterior, estou a ocupar numa relação transferencial, o lugar de R. Dessa maneira, percebi que a partir desse momento a terapia passou a acontecer e a paciente iniciou nas sessões posteriores a etapa da confissão que segundo Jung (2011) faz parte do processo inicial da terapia que se constitui de mais três, o esclarecimento, a autoeducação e a transformação.

À medida que os relatos foram acontecendo, colocando-me às vezes em seu lugar, sentindo suas dores, mergulhando em seus devaneios, ouvindo sem julgamentos os seus “eus,” o contato foi tornando-se mais efetivo e intimista, facilitando o desabrochar dos aparatos psíquicos envolvidos no processo.

“Agora, tem uma coisa que não posso falar para você. Uma coisa muito feia, errada, avassaladora, se minha mãe souber, chorei muito, qualquer coisa me irrita” (...). Estou apaixonada e estou fugindo disso (...). Ele é muito novo, não tem maturidade,quero uma pessoa que me dê segurança(sic).

Segundo Scarpato (2001), o ser humano nasce, cresce e vive em ambientes vinculares. Destes ambientes depende seu bem-estar e suas realizações na vida. Os problemas vinculares - da primeira infância à terceira idade - afetam profundamente a capacidade que as pessoas têm de amar, trabalhar e viver.

A base de uma eficaz terapia está na afinidade terapêutica. Um dinâmico e eficiente procedimento terapêutico se desenrola num espaço clínico com uma vinculação que favorece este processo. Aí está um dos mistérios desta conectividade: criar um espaço que permita o mergulho no mundo interno, a revelação do mesmo e favoreça a ampliação da atuação peculiar de cada um. Neste clima inter-relacional, adentramos com nosso aparelho simbólico numa relação genuína, onde o método utilizado de forma singular favorece as consciências e inconscientes atuarem de forma dialética e ambígua possibilitando ao ser mais camuflado e amedrontado se mostrar, se confessar, ser ouvido, esclarecido e transformar-se em busca da individuação.

Segundo Palhares (2008), a transferência em si já nos fala de algo vivo. Isso porque ela emerge do contato emocional dos pacientes com a situação analítica. No entanto, hoje sabemos que exatamente o acontecimento transferencial também induz o analista a produzir uma resposta emocional frente ao seu paciente. Considerando essas duas vivências, podemos enunciar a vivacidade do encontro analítico. Para isso é preciso sublinhar que esse encontro enlaça duas pessoas– e esse enlace envolve afetos, sentimentos, vivências inconscientes que vão engendrar mutualidade, o que nos permite dizer: estamos falando de um tratamento que se insere no âmbito da intersubjetividade. Ambos, assim paciente e analista, estão irremediavelmente vivos.

O reconhecimento da Transferência na análise foi feito primeiramente por Sigmund Freud, que utilizou o termo para se referir ao fenômeno de que “desejos do passado, reprimidos ou não satisfeitos, tendem a se transferir para um novo objeto, neste caso, o analista” (JACOBY, 2011). Em seus estudos e prática com a hipnose, Freud percebeu que muitos pacientes resistiam à técnica, por isso procurou investigar a causa desta resistência em se deixar ser hipnotizado. Dentre as causas descobertas, descreveu o fato de que alguns pacientes descobrem que estão “transferindo” para a pessoa do analista certas fantasias vergonhosas que inconscientemente gostariam de ter concretizado no passado (JACOBY, 2011).

Continuando seus estudos sobre o fenômeno, Freud concluiu que a ocorrência da transferência podia trazer muitas vantagens para o processo de cura. “Ela reativava os desejos e as experiências reprimidas na infância e assim conduzia ao âmago da neurose” (JACOBY, 2011). Entretanto, ao mesmo tempo em que começou a perceber que tal fenômeno era necessário para a dita cura psicanalítica, Freud também notou que ele pode boicotar a cura rápida, ao criar uma dependência do analisando em relação a seu analista. Assim, o manejo da transferência torna-se condição sine qua non para o sucesso da terapia. Neste sentido, Freud afirma que é necessário ao terapeuta manter-se afastado de qualquer reação emocional, pois, sendo uma forma de neurose, a transferência reflete um desejo do paciente de permanecer dependente de seu analista.

Jung considerava a concepção de Freud por demais limitada e unilateral. Contudo, o seu entendimento sobre o fenômeno da Transferência não foi sempre o mesmo, pelo contrário, após o seu rompimento com Freud em 1912, ele parecia minimizar a importância da transferência:

“Transferência ou não-transferência, isso não tem nenhuma relação com a cura... Se não houver transferência, tanto melhor. Você obtém o material da mesma maneira. Não é a transferência que possibilita ao paciente trazer à luz os elementos: você obtém dos sonhos todo o material que poderia desejar” (JUNG,2004, apud JACOBY, 2011, p.12).”

Para Jung, dois importantes fatores pareceram ter sido negligenciados na visão freudiana da transferência. Conforme explica Jacoby (2011, p.26):

Em primeiro lugar, Freud estava preocupado apenas com a causa da transferência. Jung achava que a transferência era uma ocorrência inteiramente natural em qualquer relacionamento e, por isso, também ocorre com frequência no decurso da análise. Assim, ela não apenas deve ter uma causa como também uma finalidade. Ele se tornou interessado na questão sobre qual o significado que a transferência poderia ter. Em segundo lugar, Freud acreditava que a transferência era uma repetição de experiências reprimidas na infância. Isso significaria que somente o material da história da vida pessoal, o inconsciente pessoal, estaria envolvido nela. Entretanto, num fenômeno tão importante, tão profundo e que ocorre com tanta frequência como a transferência, poder-se-ia esperar que elementos arquetípicos do inconsciente coletivo também entrassem em ação.

Considerando-se, portanto, que conteúdos arquetípicos inconscientes estão envolvidos na relação transferencial, conclui-se que os motivos para a ocorrência do fenômeno não poderão ser simplesmente uma repetição de situações da vida pessoal passada.

Para Jung, a transferência é uma forma de projeção, ou seja, “elementos psíquicos que pertencem às experiências subjetivas, intrapsíquicas, são vivenciados no mundo exterior em relação a outras pessoas ou objetos” (JACOBY, 2011). Isso denota que não estamos conscientes de que estes elementos fazem parte da nossa estrutura psíquica, entretanto devemos estar atentos a eles, uma vez que são nestes fatores inconscientes que encontramos as causas para nosso desenvolvimento futuro.

Sendo assim, a observação dos conteúdos projetados e transferidos para o analista fornece importantes indicativos para este, mostrando possíveis áreas de crescimento para o paciente. Para Jung, a transferência não era necessária, mas era algo que deveria ser cuidadosamente observado quando se faz presente. (JACOBY, 2011)

Em 1905, diante do fracasso do caso Dora, Freud escreve:

O que são transferências? Elas são novas edições ou fac-símiles de impulsos e fantasias que são despertadas e tornadas conscientes durante o progresso na análise; mas elas têm essa peculiaridade, que é uma característica particular, de que elas substituem alguma pessoa primitiva pela pessoa do médico. Colocando em outras palavras: toda uma série de experiências psicológicas são revividas, não como pertencentes ao passado, mas aplicadas ao médico no momento presente. […] Dora atuou um fragmento essencial de suas lembranças em lugar de relembrá-los (Freud, 1905/1974)

O trajeto do tratamento se movimenta incluso no drama e na trama transferencial, perpassando entre passado e presente, entre impedimento e desempenho terapêutico, entre uniões e repúdios a manobra clínica, configurando enigmas que manifestam a particularidade de cada paciente. Acredito que o amparo a esta singularidade leva o paciente a se sentir reconhecido e a depreender uma transferência que propicia um despojamento e um confiar-se ao terapeuta. Dessa forma, ao ouvir minha paciente relatar: “Lícia, ainda tenho muita coisa para te contar” (sic), de forma tão espontânea e amigável, pude constatar que o processo terapêutico que estamos desempenhando é propício para o desabrochar dessa singularidade.

Um olhar sobre os aspectos envolvidos na relação analítica é absolutamente necessário para o processo terapêutico, mas, como frisa Jacoby (2011), alguns destes aspectos podem favorecer este processo, enquanto que outros podem retardá-lo.

O contato de duas almas humanas na relação analítica é permeado de nuances que influenciam diretamente o processo que será estabelecido. Os envolvidos trazem consigo uma história, sendo que o analista precisa se despir de preconceitos e ajuizamentos a fim de estabelecer uma relação de empatia com o indivíduo que se encontra em sua frente. Entretanto, alguns aspectos conservam-se presentes ou serão acionados em determinados momentos, descrevendo relação de Transferência/ Contratransferência estabelecida. Alguns autores trazem que essa relação acontece concomitantemente e recebe o nome de cotransferência. Daí a importância do constante e profundo trabalho pessoal do terapeuta, a fim de impossibilitar o surgimento de projeções, aspectos ainda sombrios, interferirem nessa relação. Afinal, “o terapeuta só pode levar o paciente até onde ele foi.” (JUNG, 2004).

A transferência é um processo alquímico, transformador, onde os aparelhos psíquicos dos envolvidos se estruturam através da combinação entre conscientes e inconscientes favorecendo a percepção da dinâmica psíquica no procedimento terapêutico.

O analista deve ser conhecedor da possibilidade constante de ocorrerem projeções inconscientes também de sua parte, a chamada contratransferência. Enquanto que Freud reconhecia a contratransferência como um perigo para o analista, devendo ser eliminada da análise, Jung considerava-a como um fenômeno inevitável e do qual o analista deveria estar tão consciente quanto possível. É fato que, com frequência, as observações do paciente ou seu comportamento poderão atingir um determinado ponto fraco ou delicado do terapeuta.

O terapeuta deve estar constantemente ciente de ambas as possibilidades (transferência/ contratransferência) JACOBY, 2001 e precisa diferenciar uma da outra da melhor forma que conseguir. Algo relevante que busquei identificar no decorrer da condução do caso, nas sucessivas sessões e que certamente corroboraram para a tomada de consciência do processo e um fluir da relação terapêutica.

 

3. Considerações Finais

O trabalho reflexivo desse artigo foi motivado no caso de uma paciente, onde observei que, só a partir da efetivação da relação transferencial e contratransferencial, foi estabelecido o vínculo entre nós, o que propiciou o andamento da terapia.

Percebi nesse trabalho, que a atitude clínica impessoal, baseada apenas em teorizações não me levavam a sentir minha paciente, escutar sua alma, sua verdadeira demanda. Precisei abdicar às vezes da minha postura apolínea consciente e deixar o lado dionisíaco inconsciente relacionar-se com a consciência de Rosa escancarada à minha frente, oportunizando o surgimento de intimidade que favoreceu todo o processo. Só assim pude escutá-la, estabelecer a conectividade, pois inicialmente a dificuldade era intensa em acompanhar seu discurso desorganizado e volátil aos meus ouvidos.

Não foi fácil, pois a paciente veio mergulhar em si mesmo, ou em mim mesmo, e só através de uma relação genuína, investigativa a fim de compreender seu psiquismo, iria ajudá-la na estruturação do suposto caos em que se encontrava. Foi inevitável o surgimento da insegurança, do medo do novo e dos desafios em exercer a nova persona, a de terapeuta.

Como sensação que sou, um dos quatro tipos psicológicos identificados e estudados por Jung, na ânsia de acertar sempre, do perfeccionismo, de ter tudo delimitado e determinado previamente, sofri horrores, quebrei paradigmas, confrontei-me com aspectos sombrios, mas fundamentais para essa nova configuração, o papel de psicóloga.

Nas supervisões, a postura do meu supervisor e colegas, algumas vezes contestadas por mim, demonstrou que os processos transferenciais/contratransferenciais/citados por alguns autores, permeiam as relações humanas de forma unânime, interferindo no sentir e no atuar peculiar de cada um dos envolvidos. Dessa forma, entendo as relações de forma geral como aspectos importantíssimos na formação de vínculos e a transferência e contratransferência como questões cruciais no nosso trabalho clínico, e um dos grandes instrumentos que sustentam o processo terapêutico.  

É um encontro alquímico e inevitável que acontece no setting, sustenta os procedimentos psicoterápicos e encontra-se sempre presente, permeando e norteando o que está mobilizando nossos aparatos psíquicos.

 

Referências:

AGUIRRE, Ana Maria de Barros; HERZBERG, Eliana; PINTO, Elizabeth Batista; BECKER, Elisabeth; CARMO, Helena Moreira e Silva; SANTIAGO, Mary Dolores Ewerton. A Formação da atitude clínica no estagiário de psicologia. Rev.Psicol. USP vol.11 n.1, São Paulo 2000. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642000000100004. Acesso em 09 set. 2012

JACOBY, Mario. O encontro analítico: Transferência e relacionamento humano. Tradução de Ana Paula Garbuglio-Petropólis, RJ: Vozes, 2011.

JUNG,Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia: Contribuições ao Problema da Psicoterapia E À Psicologia Da Transferência/C.G.Jung; Tradução de Maria Luiza A Ppy; Revisão Técnica de Dora Ferreira da Silva. - 14 Ed.- Petropólis Vozes, 2001.

PALHARES, Maria do Carmo Andrade. Transferência e contratransferência: a clínica viva. Rev. bras. psicanál, São Paulo, v. 42, n. 1, mar. 2008.

SCARPATO, Artur Thiago. Transferência Somática: A dinâmica formativa do vínculo terapêutico. Rev.Hermes do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, número 6, 2001, p 107-123. http://www.psicoterapia.psc.br/scarpato/t_vinculo.html. Acesso em 09 set.2012.

Uma introdução a psicoterapia. Rev. Psicol. teor. prat. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009. Acesso em http://www.psicoterapia.psc.br/scarpato/psicoter.html acessos em 09 set. 2012

Transtorno Somatoforme. http://www.psicosite.com.br/tra/sod/somatoforme.htm#somatização. Acesso em 01/11/2012.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Mito de Quíron: Nuances e Prática no Processo Psicoterápico – um Estudo de Caso na Teoria Analítica

Resumo: O objetivo do presente trabalho é a reflexão sobre a posição ocupada pelos mitos na prática da psicoterapia. O estudo surgiu a partir da necessidade de melhor compreender a posição demandada por paciente em atendimento clínico, atendido no Serviço de Psicologia da Faculdade da Cidade do Salvador. Para elucidar as questões exigidas pelo caso, recorreu-se a uma revisão de literatura analítica a respeito de alguns conceitos junguianos e a posição do psicoterapeuta no atuar no setting terapêutico. Partiu-se da análise do Mito de Quíron, o Curador Ferido, para se entender a dimensão de "cura" que demanda do analista um lugar de "curador sempre ferido", uma vez que a ideia presente no mito é a de que Quíron pôde se tornar um exímio curador a partir de sua própria ferida incurável. A ferida de Quíron, utilizada por ele como um recurso para entender o sofrimento dos que curava, foi relacionada ao processo contratransferencial presente no procedimento terapêutico.

 

Palavras-chave: Clínica analítica, Inconsciente Pessoal, Inconsciente Coletivo, Arquétipos, Mitos.

 

1. Introdução

Em seus primórdios, a psicologia analítica veio se diferenciar das teorias psicológicas existentes na época, pelo conceito de inconsciente defendido por seu precursor. Ao definir inconsciente, JUNG (2000) utiliza a classificação de inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. Segundo ele “uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal”. Essa camada é composta por experiências e aquisições pessoais. Jung (2006) chama de inconsciente pessoal a camada mais ou menos superficial da porção inconsciente da psique.

 O inconsciente pessoal repousa sobre uma camada mais profunda, chamada de inconsciente coletivo, que é inata e não tem origem em experiências e aquisições pessoais. O autor escolheu o termo “coletivo” por se tratar da parte do inconsciente que não tem uma natureza individual. Sendo universal, possui conteúdos e modos de comportamento que são idênticos em todos os seres humanos, representando um substrato psíquico comum e de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo.

Jung (2004) apresenta a ideia coerente de que não sendo o indivíduo apenas singular e separado, mas inclusive um ser social, também a psique humana não é algo isolado e totalmente individual, sendo, portanto um fenômeno que também é coletivo. E da mesma forma que certas funções sociais e instintos vão de encontro aos interesses dos indivíduos particulares, a psique humana, por conta de sua natureza coletiva é dotada de certas funções e tendências que se opõem às necessidades individuais.

O reconhecimento de uma existência psíquica se dá apenas diante da capacidade de reconhecer seus conteúdos através de uma consciência, de forma que só é possível falar de inconsciente na medida da comprovação de seus conteúdos. Enquanto os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade pessoal da vida anímica, os conteúdos do inconsciente coletivo, por outro lado, são chamados arquétipos (JUNG, 2006).

Os conteúdos do inconsciente pessoal são de natureza pessoal e derivam em parte de aquisições da vida individual e em parte por material psicológico que poderia se tornar consciente. Elementos psicológicos incompatíveis com os conteúdos da consciência são reprimidos, tornando-se por isso inconsciente. Existe sempre a possibilidade de tornar conscientes os conteúdos reprimidos e, uma vez que tenham sido reconhecidos, mantê-los na consciência. São de natureza pessoal os conteúdos inconscientes que nos permitem reconhecer seus efeitos em nosso passado, sua manifestação parcial ou sua origem específica (JUNG, 2004).

Para Jung (1985) o inconsciente coletivo é uma possibilidade que nos foi legada na forma de imagens mnemônicas desde os tempos primitivos, ou, dentro da estrutura cerebral, para falar em termos de anatomia. O que existem não são ideias inatas, mas possibilidades inatas de opiniões que limitam as mais ousadas fantasias, colocando categorias à capacidade de fantasiar. Tal possibilidade coloca certas ideias a priori, que apenas se deixam afirmar através da experiência.

Jung (2000) afirma que o inconsciente coletivo, sendo uma estrutura cerebral generalizada, é um espírito “onipresente” e “onisciente” que vive no indivíduo criativo, manifesta-se na visão do artista, na inspiração do pensador, na experiência interior da pessoa religiosa. Na medida em que conhece o ser humano como ele sempre foi e não como é neste exato momento, conhece-o como mito. Desta forma, a relação com o inconsciente supra-pessoal ou inconsciente coletivo é uma expansão do ser humano para além de si mesmo, representando uma morte de seu ser pessoal e, consequentemente, um renascer para uma nova dimensão.

Por inconsciente coletivo, Jung entende uma camada mais profunda da psique, repleta de conteúdos e comportamentos comuns a todos os indivíduos. Conteúdos esses que não são adquiridos individualmente, mas herdados. “O inconsciente coletivo não é de natureza individual, mas universal, contrariamente a psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são (...) os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos.” (JUNG, 2000).

A esses conteúdos herdados Jung denominou arquétipos, predisposições natas que surgem na consciência como imagens, padrões ou motivos recorrentes e universais, que representam e simbolizam a experiência tipicamente humana e universal de diferentes maneiras. Segundo JUNG (200), “arquétipo (...) indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar”.

O arquétipo é formado por conteúdos universais essencialmente inconscientes, que quando chegam à consciência ganham forma e intensidade de acordo com a consciência pessoal na qual emergiram. O arquétipo é comum a toda espécie humana, porém a forma como ele vai se apresentar, sua intensidade e características ao se manifestar são pessoais.

Os arquétipos encontram seu veículo de manifestação nos símbolos. Um símbolo é uma forma de energia psíquica e tem a capacidade de expressar algo indefinível, algo que vai além da capacidade verbal de expressão.

A palavra "SÍMBOLO" origina-se do grego symbolon, um sinal de reconhecimento.

Na Grécia antiga, quando dois amigos se separavam, quebravam uma moeda, um pequeno prato de argila, um anel, ou ainda a metade de uma concha de madrepérola. Quando o amigo ou alguém de sua família voltava, tinha de apresentar sua metade. Caso ela combinasse com a outra metade, esse alguém teria revelado sua identidade de amigo e tinha, assim, direito à hospitalidade.

A palavra símbolo significa etimologicamente aquilo que foi colocado junto, que foi lançado junto. Portanto a ideia de símbolo implica em algo composto, então quando combinado, passa a ser um símbolo, símbolo de alguma coisa. "O símbolo, no entanto, pressupõe a melhor designação ou fórmula possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada" (EDINGER, 1972).

Uma vez encontrado um sentido específico, uma expressão apropriada que melhor formule o que se busca ou se pressente, o símbolo está morto; ele passa a ser um sinal. 

“Sinal é uma expressão usada para designar coisa conhecida, continua sendo apenas um sinal e nunca será símbolo” (HALL, 1983).

Todo fenômeno psicológico é um símbolo, no sentido que ele enuncia ou significa algo mais e algo diferente, algo que escapa ao nosso conhecimento atual. O que se percebe no símbolo é uma consciência em busca de outras possibilidades de sentido. A palavra tem um significado exato, o símbolo não. O significado do símbolo não é óbvio, mas alguma coisa viva, intensa e enigmática.

Sempre que a imaginação criativa for livremente expressa no decorrer da história, o arquétipo ou imagem primordial reaparece. Trata-se de uma figura mitológica. Ao examinar com detalhe estas imagens, é possível constatar que são o resultado, o resquício de inúmeras experiências do mesmo tipo, descrevendo a média de milhões de vivências individuais. Apresentam uma imagem da vida psíquica dividida e projetada nas diversas formas do vasto material mitológico (JUNG, 1985).

Mesmo que as imagens produzidas pela psique possam ser altamente pessoais, é o drama humano geral que é encenado em nosso palco interior. Nossos problemas particulares são na verdade problemas humanos.

O arquétipo em sua manifestação imediata, como o encontramos em sonhos e visões, é muito mais individual, incompreensível e ingênua do que nos mitos, por exemplo. Ele representa um conteúdo inconsciente que se modifica através da conscientização e percepção, assumindo matizes variáveis conforme a consciência individual na qual se manifesta (JUNG, 2006).

Jung (2006) afirma que até nossos dias foi negado o fato dos mitos serem manifestações da essência da alma. Explicações objetivas do óbvio não interessam ao homem primitivo, no entanto, sua alma é impelida inconscientemente a assimilar as experiências externas sensoriais a acontecimentos anímicos. Para o homem primitivo, por exemplo, não basta ver o Sol nascer e declinar; este acontecimento exterior deve corresponder a um acontecimento da alma. Desta forma, o Sol deve representar em sua trajetória o destino de um deus ou herói que habita a alma do homem. Todos os acontecimentos mitologizados da natureza são expressões simbólicas do drama que o homem vivencia internamente e inconscientemente em sua alma e que a consciência apreende através da projeção. Diante da força da projeção, foram necessários milênios de civilização para desligá-la de algum modo de seu objeto exterior.

O autor ainda diz que é admirável o fato de não termos relacionado antes os mitos com os acontecimentos anímicos, pois o homem primitivo é de uma subjetividade muito grande. O processo anímico inconsciente está na base de sua linguagem e seu conhecimento da natureza. Exatamente por ser um processo inconsciente, o homem pensou em tudo, menos na alma na hora de explicar o mito. O homem ignorava o fato da alma conter todas as imagens originárias do mito e do nosso inconsciente ser atuante e padecente. O primitivo encontra nos grandes e pequenos fenômenos da natureza analogias para o drama interno do homem.  

Na tentativa de conceituar mito, Brandão (2007) chama atenção para o fato de que o mesmo não tem para ele a conotação usual de fábula, lenda, invenção, ou ficção, e sim a ideia que lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, impropriamente chamadas de culturas primitivas. Para estas sociedades, mito é o relato de um acontecimento ocorrido num tempo primordial, através da intervenção de seres sobrenaturais. Mito é então, a narrativa de uma criação, pois nos conta de que modo algo que não era, começou a ser. É a palavra “revelada”, o dito.

Da mesma forma que os pais, através do relato das experiências pelas quais passaram ensinam aos filhos como é a vida, os mitos fazem isso num sentido mais amplo, delineando padrões para a caminhada existencial. Utilizando os recursos da imagem e da fantasia, os mitos abrem para a consciência o acesso direto ao inconsciente coletivo. Mesmo os mitos hediondos e cruéis são úteis, já que a tragédia ensina sobre os grandes perigos do processo existencial (BRANDÃO, 2007).

O autor diz que além de gerarem padrões de comportamento humano, ensinando os caminhos que percorre a consciência coletiva numa cultura, os mitos permanecem através da história como marcos referenciais pelos quais a consciência coletiva pode voltar a qualquer momento e se realimentar, se revigorar e continuar se expandindo. Aí reside sua grande utilidade dentro de uma cultura.

Sendo apresentado como um sistema, o mito tenta, de forma mais ou menos coerente, explicar o mundo e o homem. Ele é verdadeiro se correto e conforme a lógica e é falso se dissimula alguma mentira secreta.  Pode-se acreditar nele ou não, pela vontade ou mesmo por um ato de fé, se ele parece belo ou possível, ou mesmo porque se deseja dar-lhe crédito.

Expressando o mundo e a realidade humana, o mito tem como essência uma representação coletiva que chegou até nós atravessando gerações. Ao passo em que pretende explicar o mundo e o homem, ou seja, a complexidade do real, ele não pode ser lógico. Ele é ilógico e irracional, abrindo-se como uma janela a todos os ventos e prestando-se a todas as interpretações. Quem decifra o mito, decifra a si próprio (BRANDÃO, 2007).

Dentro do conceito de Jung, Brandão (2007) define o mito como a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo, já que é uma das formas através das quais o inconsciente se manifesta.

Os mitos têm como função mais importante “fixar” os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas. Dessa forma, trago o mito de Quíron ou Chiron, como representação da dinâmica interrelacional ocorrida no processo terapêutico.

Quíron, era um centauro que, ao contrário do que se esperaria de uma criatura com corpo de cavalo e ombros e cabeça de homem, era sábio e educado. Cabia-lhe a tarefa de educar heróis nas artes da música e da medicina; outros afirmam ainda ser ele caçador e escultor (Groesbeck, 1983). Quíron era um ser diferente, por não possuir a natureza selvagem característica aos outros centauros, era também imortal.

Apesar de ser um centauro, Quíron tinha algo muito atípico. Ele fora ferido por Hércules, que o acertou com uma flecha envenenada. No entanto, esse ferimento, não era como qualquer outro que ele próprio podia curar era uma ferida incurável, para a qual não havia remédio e, portanto, nada se podia fazer para curá-lo. Esse ferimento é muito significativo, pois foi justamente por ter se tornado portador de um sofrimento crônico que Quíron transformou-se em um exímio curador. Levando-se em conta o destino desse curador ferido e refletindo-se sobre o significado desse seu ferimento, poder-se-ia pensar que teria sido a partir de seu próprio sofrimento, incurável, que Quíron pôde entender a dimensão do sofrimento daqueles que curava.

Considerando-se a história do mito de Quíron e a proposição de se pensar o lugar do terapeuta na clínica, pode-se considerar importante a perspectiva de cura sugerida pelo mito, uma vez que essa reflete a ideia de que "cura" seria mais do que a simples conscientização dos conflitos que demandam à procura pela terapia, seria um aprender a lidar com o sofrimento de forma saudável e enriquecedora.

O mito de Quíron coloca em relevo a importância de se encarar nossas dores e feridas. Esta é a condição básica para qualquer cura. Enquanto negamos e fugimos, neutralizamos o efeito de qualquer recurso terapêutico, seja médico, psicológico ou mesmo espiritual e transcendente. A negação não abranda a dor. Ao contrário, aguça e intensifica o sofrimento.

Além da diferença evidente, o que mais nos aproxima de Quíron é uma ferida muito peculiar: uma ferida incurável, provocada por um amigo! Pode-se pensar o terapeuta, no lugar do curador “curado, entretanto, Quíron representa uma coisa diferente: o curador ainda ferido. Isso implica numa perspectiva segundo a qual nossos ferimentos não são algo para superarmos, para deixar para trás no caminho, para esconder, mas sim uma parte integral de nós, o que não significa que ser ferido seja sinônimo de uma verdadeira saúde, mas que a aceitação de nossos padecimentos faz parte da verdadeira saúde, assim como a aceitação de que algumas feridas saram enquanto outras não (DOWNING, 1991,).

O fato de se imaginar o terapeuta tal qual um Curador Ferido, não o libertaria de um trabalho voltado para as suas próprias feridas, pois, esse lugar de curador ainda ferido requer um empenho pessoal no intuito de elaboração das demandas e padecimentos, ou seja, um trabalho sobre eles. Assim, pode-se enfatizar a importância da terapia do próprio analista, à medida que essa implicação no próprio processo terapêutico se faz essencial.

Ao se avaliar que Quíron era estimado como um exímio curador por ter em seu próprio corpo uma ferida incurável e assim ter a possibilidade de compreender o sofrimento dos que curavam, é possível também pensar que o analista, à medida que possuísse essa mesma representação e elaboração de seu sofrimento (presente em Quíron), também estaria produzindo uma abertura para que o paciente depositasse nele algum esclarecimento sobre seu próprio sofrimento.

À medida que o terapeuta é compreendido pelo paciente como alguém que já sofreu, ou seja, um Curador Ferido passa a existir a possibilidade de um entrosamento, e assim, uma fresta para que o papel que ocupa se transforme em suporte de transferências.

A situação de dependência e autonomia do paciente para com o terapeuta diz respeito à relação de transferência e contratransferência que se estabelece entre eles – para Jung (1985), esses dois fenômenos acontecem ao mesmo tempo e significam a mesma coisa. A empatia, atitude que o terapeuta experimenta a partir do momento que se coloca no lugar do paciente e o acolhe deixando-o a vontade, oportuniza o surgimento dos processos transferenciais e contratransferenciais, o que favorece a psicoterapia, pois promove a adaptação do paciente ao processo, ajudando-o na resolução dos seus conflitos Então é de suma importância que este profissional preste bastante atenção aos seus sentimentos, pois o efeito da terapia está relacionado, dentre outras coisas, com o grau de doação do terapeuta.  

Pode-se refletir, portanto, que esse lugar misterioso, de Curador Ferido, pode ser demonstrado não só na palavra, mas também na ação, como no manejo das questões. Essa atitude demonstra para o paciente que existe ali, o lugar do terapeuta, que é um sujeito que pode acolher, mas que também sofre também falha coloca limites e acredita que o outro pode desenvolver recursos para suportar essas suas falhas, pode se relacionar e aprender com elas por intermédio do que se estabelece na transferência entre eles.

 

2. Conclusão

Cada vez mais há evidências de que nosso funcionamento psicológico e biológico sofre influência dos sistemas pessoais e culturais de crenças, de forma que crenças que nos trazem esperanças e significação pode ajudar-nos a superar graves dificuldades. Já a perda do significado e da esperança resulta em depressão e enfermidades (WHITMONT, 1991).

Segundo Whitmont (1991), até nossas supostas convicções racionais, como pressuposições e pontos de vista, fundamentam-se em produções da psique inconsciente. Surgem como fantasias espontâneas e, num momento posterior, são explicadas, racionalizadas e interpretadas pela mente consciente.

Para o autor, a integridade de uma vida individual, tanto quanto da vida coletiva, que é a cultura, depende dos mitos. Os temas arquetípicos dos mitos conferem forma e significação tanto à vida individual quanto coletiva, conferindo-lhes integridade. A desintegração é o resultado da distância do significado e da perda do contato com a estruturação arquetípica.

Diante desta afirmação, é coerente a ideia de que a mitologia traz para a psicoterapia a possibilidade de oferecer aos pacientes algo que lhes ajude a encontrar significação em suas questões, conflitos e sofrimentos. Os mitos permitem que cada um de nós sinta-se menos só e mais parte de uma coletividade humana que vem ao longo da história repetindo com diversas roupagens seus peculiares dramas.

A psicologia analítica, na medida em que representa uma psicologia do significado, exige que seus praticantes tenham um conhecimento o mais extenso e aprofundado possível da mitologia existente, pois isso os ajudará a identificar o material arquetípico trazido pelos pacientes, bem como a auxiliá-los a entrar em contato com este material de forma mais consistente e que lhes possibilite dar significado às suas vivências.

Tantos nossos comportamentos da vida externa quanto as peripécias trazidas em sonhos e fantasias, podem revelar um padrão arquetípico que é mais facilmente identificável na medida em que o terapeuta possui um conhecimento das mais variadas roupagens nas quais os arquétipos se apresentam.

Além disso, um vasto conhecimento em mitologia facilita a comunicação entre o terapeuta e os mais diversos tipos de pacientes que podem, a depender de seus conhecimentos e vivências, compreender melhor um ou outro tipo de mitologia. Em outras palavras, o terapeuta junguiano precisa estar preparado para se comunicar através de diversos símbolos, se adaptando à linguagem que é mais próxima ao seu paciente.

 

REFERÊNCIAS.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

EDINGER, Edward. Ego e Arquétipo. São Paulo : Cultrix, 1972.

HALL, James A. Jung e a Interpretação dos Sonhos. 10. ed. São Paulo  Cultrix, 1983.

JUNG, C. G. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1985.   Civilização em Transição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000. . Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

WHITMONT, E. Retorno da Deusa. São Paulo: Summus, 1991.

SILVA, Mariana Benatto Pereira da; CREMASCO, Maria Virgínia Filomena. O Analista e a Toxicomania. Rev. Mal-Estar Subj.,  Fortaleza,  v. 10,  n. 3, set.  2010 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482010000300010>. acessos em  16  abr.  2013.

 

 

 

 

 

 

 

Perda, um processo natural?

A perda é uma experiência inerente à condição humana e de extrema importância para desenvolvimento emocional da pessoa.

Sendo assim, deveríamos estar acostumados a encarar com naturalidade, pois já se nasce perdendo o calor, o aconchego materno, bem como, os diversos 'eus” construídos no decorrer da existência. Mas, apesar de sabermos e utilizarmos diversas estratégias de enfrentamento possíveis para lidar com o sofrimento advindo desse processo “natural”, no confronto com a situação, a realidade é bem outra. A dor é inevitável!

Como seres demandados de amor, que buscam, incessantemente, a satisfação, completude, individuação, encontro com o Self, como proceder num momento tão crucial, onde o vazio faz-se tão presente? Talvez reaprender, buscar novos mecanismos de enfrentamento, rememorar, revirar os arsenais da memória e pensar que existe algo imperdível, infinito e eterno: o sentimento, pois tamponar a lacuna deixada pela ausência, impossível!

Perdemos pessoas, amores, amizades, perdemos objetos, coisas, situações e oportunidades. Entretanto, existem algumas “perdas” que extrapolam os liames da consciência, do entendimento de que, por mais que amemos tudo o que amamos, não temos o poder de fazer com que tudo permaneça, e adentre o campo do “sentir”. São aquelas decorrentes das pessoas que fazem parte do nosso script existencial, personagens principais, as que temos certeza que se não existissem, o enredo da nossa história teria sido outro. Então, segundo Marla de Queiroz, deixa que as coisas se renovem, e que as perdas tenham mais de um sentido, que os vazios te ofereçam mais espaço, pra que a vida te compense com o impossível.

 

 

 

 

 

 

 

Autoconhecimento

Autoconhecimento é a capacidade do indivíduo conhecer a si mesmo. É um processo gradativo e contínuo que requer, além de força de vontade, coragem e um desejo enorme de mudança e transformação. Entretanto, para alterar padrões de pensamentos e comportamentos de uma vida inteira, o querer é fundamental e a predisposição para enxergar, conhecer, acolher e compreender o que se sente deve permear e alicerçar atitudes, pois aspectos inconscientes, alheios à vontade agem à revelia, promovem movimentos atávicos, escapam do controle do ego, fazendo-o utilizar mecanismos de defesa a fim de evitar o confronto com aspectos obscuros da personalidade, a sombra.

Mas, é comum não querer conhecer-se porque isso significa ter que vislumbrar não só o passado, mas tudo aquilo que está bem dentro de nós, a sombra, temendo-a encontrá-la, escolhendo assim a estagnação, permanecer na zona de conforto, por medo, comodismo, ignorância, orgulho, em detrimento do crescimento. Dessa forma, a psicoterapia ainda é o meio mais indicado para auxiliar no processo de autoconhecimento visto que, o profissional responsável, sem censuras e julgamentos, facilita, provoca, dá visibilidade e voz aos diversos “eus”. É aquele que coloca a lente, amplia o olhar do paciente, encoraja-o a se confrontar com aspectos sombrios, faz acessar outros pontos de vistas, consequentemente clareia as fantasias que guiam as suas vidas, pois só a partir de um olhar genuíno e honesto acerca do que se é, pode-se implementar mudanças efetivas e oportunizar o crescimento!

 

 

 

 

 

 

 

 

A vida constitui-se de conquistas e perdas

E o que é a vida, senão um "palco", onde um intricado sistema de emoções, afetos, desafetos, vínculos, perdas, ganhos, conflitos pessoais e inter-relacionais se sobrepujam, são sentidos no corpo e na alma, manifestam-se em todos os aspectos da nossa existência, de diversas e inusitadas formas, através dos papeis   que desempenhamos como seres pluri imensionais que somos. Então, como não nos é permitido escolher o enredo da "peça" que vivemos, poderemos optar pela forma de atuar e, a depender dessa escolha, o desenrolar do "script" e as consequências advindas da exibição deste, serão coroados de sucessos ou insucessos, ou pelo menos, os seus efeitos geradores de sofrimento serão atenuados. Assim, sugiro que coloquemos “máscaras" com características que oportunizem relações não obstaculizadas, atitudes criativas e proativas, valorização do que se sente e do que se é, evitar focalizar no ausente, no intocável num futuro que ainda não se presentificou e, muitas vezes, são empecilhos, para sermos felizes com o aqui e o agora! Se a apresentação tornar-se difícil, busque alternativas, atalhos, leia e releia o texto, ressignifique sua atuação e compreensão da mesma, peça ajuda a coadjuvantes, amplie seu olhar para além do contexto onde está inserido e se empodere das habilidades que gerenciem e facilitem esse atuar, a fim de tornar o seu "espetáculo “agradável, ameno, alegre, tranquilo e feliz.

 

“Viver e não ter vergonha de ser feliz"!

 

 


 

 


 

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